sábado, 15 de agosto de 2009

Acervo Paulo Freire



É preciso descer as escadas de uma pequena loja de um pequeno centro comercial na zona oeste de São Paulo. Na parte de cima fica a Editora e Livraria Paulo Freire. Na de baixo, os 7 mil tomos da biblioteca do educador, divididos entre o material adquirido antes e depois do exílio de Freire, entre 1964 e 1980.

O acervo, antes espremido na casa dos Freire, migrou para o endereço após a morte de Paulo, em 1997. “Achávamos que seria muito egoísmo ficar com esse tesouro e privar centenas e centenas de pessoas desse conhecimento”, conta Lutgardes Freire, filho do educador e um dos atuais responsáveis pela manutenção da biblioteca.

De comum acordo os cinco filhos decidiram que os livros precisavam estar acessíveis ao público. Foi então que as obras, juntamente com as estantes de madeira que as abrigavam, mudaram de endereço. Saíram da rua Valença, no bairro do Sumaré – onde Freire morou –, para a rua Cerro Corá, no Alto da Lapa.

Um ano depois, chegou Lutgardes, ou Luti, como o pai costumava chamá-lo e como é conhecido pelos colegas de trabalho, designado para “tomar conta” do patrimônio, já conhecido seu, mas que agora saía do âmbito privado para o público. Além de coordenar o arquivo, Luti virou uma das atrações do local. Ângela Antunes, diretora pedagógica do Instituto, brinca que, quando as pessoas ficam sabendo ser ele filho de Freire, logo pedem para tirar foto.

Moacir Gadotti, amigo de Freire, um dos fundadores do Instituto e atual presidente do Conselho Deliberativo da instituição, sorri ao lembrar dos tempos em que acompanhava o educador em seu trabalho. “Ao pegar qualquer livro novo, a primeira coisa que ele fazia não era abrir, era cheirar o livro”, recorda, dando ênfase à relação de carinho de Freire com a leitura.

Segundo Gadotti, o amigo era um leitor crítico, inclusive de suas próprias obras. Em uma dedicatória ao amigo e à mulher, na décima sétima edição de Pedagogia do Oprimido, livro de maior sucesso, reeditado em 1987 pela Paz e Terra, Freire anota: “Para Rê e Moacir, esta primeira edição decente da Pedagogia em português”.

Quem visita a biblioteca também pode encontrar o fac-símile dos manuscritos da Pedagogia do Oprimido – o original foi doado pelo próprio autor ao Chile – e se deparar com a precisão de Freire no momento em que produzia os textos. Nas páginas escritas à mão, quase não há rasuras. Gadotti explica que isso acontecia porque Freire só começava a escrever após ter elaborado, mentalmente, o que queria dizer e que, quando tinha uma dúvida – sobre a melhor palavra a ser usada, por exemplo –parava imediatamente e consultava um de seus vários dicionários.

Esse método de produção de conhecimento de Freire é um dos principais atrativos para os pesquisadores. Muitos procuram o acervo interessados nas anotações que ele fazia durante a leitura, em papeizinhos avulsos ou nas páginas finais das publicações. Em vários volumes da biblioteca é possível encontrar, em letra miúda, linhas e mais linhas escritas por ele.

A biblioteca também reflete a diversidade de assuntos pelos quais transitava. De acordo com Fernanda Soares, assistente no centro de referência, na biblioteca pós-exílio o que menos se encontra são livros de educação. Há muito material de filosofia, de sociologia, bíblias e até obras das áreas de saúde e de ciências exatas. Lado a lado nas estantes estão, por exemplo, Carlos Castañeda e Manuel Castells. O primeiro, polêmico antropólogo ligado ao misticismo. O segundo, sociólogo dedicado ao estudo das tecnologias da comunicação e da informação nas sociedades contemporâneas.

“Ele não era sectário na leitura. Ele não se negava a ler algo porque discordava”, explica Ângela Antunes, recorrendo aos conceitos do próprio Freire, que propôs a distinção entre o sectário, aquele que se fecha ao diálogo, e o radical, que, ao mesmo tempo, permanece fiel a seus princípios e se abre ao processo de debate. Era esta a posição que ele buscava ter.

A maneira de compreender o mundo desenvolvida pelo educador repercutiu não apenas no Brasil. Talvez os registros de visitação do centro de referência levem o leitor a perguntar se não estaríamos, nós brasileiros, aquém de reconhecer devidamente o valor da obra de Freire. No primeiro semestre de 2009, por exemplo, foram 118 visitantes, quase metade estrangeiros.

Nas prateleiras dedicadas às traduções da obra de Freire, há 40 idiomas diferentes. Entre eles uma edição em bengali – língua oficial em Bangladesh – e outra em coreano. Há também um exemplar da Pedagogia do Oprimido, encontrado após a Revolução dos Cravos em uma das prisões para onde eram encaminhados os presos políticos da ditadura portuguesa. Assina a dedicatória “Américo Madeira”. Trata-se, provavelmente, do atual embaixador de Portugal em São Tomé e Príncipe.

Levar para a internet essas informações é o desafio atual da equipe do Instituto Paulo Freire. Mas a intenção tropeça em um problema conhecido das organizações sociais brasileiras: a falta de recursos. Sem verba específica para a digitalização do acervo, gente de outros setores do instituto desdobra-se para, na medida do possível, disponibilizar o material na rede. Grande parte é composta de textos raros.

A coordenação informal do processo é feita por Anderson Fernandes de Alencar, responsável pela área de tecnologia da informação e educação a distância na instituição. Ele e outros quatro funcionários tiram algumas horas da semana para o processo de digitalização, que, como informa, não tem prazo para terminar.

Além da falta de pessoal dedicado exclusivamente ao trabalho, o grupo precisa estar atento para não disponibilizar material não autorizado na rede. Freire, em seu testamento, fez uma divisão curiosa dos direitos autorais sobre sua obra. Após viúvo, ele casou-se novamente em 27 de março de 1988. Tudo que havia produzido até o dia anterior ficou sob a tutela de seus cinco filhos. O que foi feito depois ficou para a segunda mulher. Ao instituto é permitido disponibilizar em copy left apenas o que pertence aos filhos.

Fonte: Carta Capital

2 comentários:

Biosfera disse...

Essa abordagem demonstra porque Paulo Freire permanece vivo até hoje nos professores...

Parabéns,

Anônimo disse...

Por que nao:)